domingo, 2 de maio de 2010

Opinião e realidade


Nenhuma opinião é dita como palavras que se jogam ao vento, cruzando os ares como se não tivesse início nem fim. Toda fala tem um princípio e uma razão de onde emanam seus argumentos. Portanto, discursar significa valer-se do passado para transformar o presente, ou em outras palavras, é o velho caiado do novo.

A noite se avolumava enquanto, reunidos em torno da mesa, o assunto atirado às discussões girou em torno de um tema quase que singular para mim: educação. Tudo começou depois que um tio comentou sobre uma reunião de pais que teve na escola do filho dele. As críticas à escola e sua direção foram inúmeras. Ele atacou com veemência o desabafo de uma professora aos que estavam presentes, a qual disse que "não dava mais conta daqueles alunos". Esse mesmo tio repetia que seu tempo na escola foi curto porque estudou até a sétima série, mas reforçava que é inadmissível que a escola permita a desordem de alunos no pátio, a falta de respeito contra os professores e a sapecagem dos estudantes do ensino fundamental.

Suas críticas ganharam outros pais que também estavam na mesma reunião. Estava iniciado o debate. Meu avô não hesitou em argumentar de imediato que os maus alunos deveriam ter 30 dias de suspensão, quando o máximo permitido é três. E ainda se declarou como um possível diretor capaz de colocar a casa nos eixos. Outro tio seguiu a mesma opinião do primeiro cegamente, da mesma maneira que um ministro do Supremo convalida seu voto ao de seu relator sem dar a ele mesmo muito tempo para pensar.

E não poderia ser diferente. Penso que essa posição radical, que condena muito mais a escola do que o aluno, tem uma simples justificativa. Fica mais fácil compreender um discurso quando o analisamos em seu contexto. O contexto desses três adultos era o de uma escola rígida, respeitada, em que ser professor conferia um alto grau de respeitabilidade e admiração no Brasil. Pena que eles valeram-se do passado na tentativa de preservar uma concepção escassa para o presente. A educação daquele tempo já não é mais a de hoje.

Os fundamentos do pensamento, e mais ainda a faculdade de opinar, chega mais perto da verdade quanto mais próximos estamos da realidade. Opina melhor quem tem mais conhecimento, ou seja, mais afinidade com a realidade que vive no seu meio. Karl Marx, sociólogo imortal para os ocidentais, fez uma dura crítica ao pensamento idealista alemão. Segundo Marx, às concepções desenvolvidas por Feurbach e Hegel podiam-se chamar de ideológicas exatamente porque não refletiam a realidade social e história da Alemanha do século 18 - eram ideias e visões distorcidas daquela realidade. Portanto, qualquer teoria para julgar-se válida, e não apenas mera conjectura, deveria sair da matéria para alcançar a ideia, e não sublevar-se do céu para a terra. Isso quer dizer que não pensamos a partir de ideias vagas ou sofridas construções mentais, mas sim dos elementos da materialidade histórica que se absorvem através dos nossos sentidos.

Não obstante, Schopenhauer filosofou algo semelhante. No texto chamado Pensar por si mesmo
, ele admitiu que uma grande quantidade de conhecimentos, se não elaborados por um pensamento próprio, será tão modesto quanto uma rica biblioteca quando desorganizada. O texto é uma sagaz crítica àqueles que julgam-se sábios e medem seu grau de entendimento pela quantidade de coisas que leem e reproduzem com pompa, mas que não conseguem organizar um pensamento próprio a partir daquilo que vive, do ambiente que o cerca e das circunstâncias perceptíveis.

Eu talvez diria o mesmo que meus tios e meu avô. Culparia os professores, diria que eles deveriam ter mais pulso, ser mais firmes e enérgicos no tratamento com os alunos para impôr-se como supremos. Entretanto, minha opinião se revela outra. Em outubro de 2008 fiquei inspirado ao receber o convite de uma escola municipal de Goiânia para participar do projeto Mais Educação, do governo federal. A princípio, diagnostiquei que trabalhar os conteúdos textuais de jornais com os pequenos seria um elemento de exorção à ignorância, além de um inevitável momento para se verificar na prática a validade de Paulo Freire e Vygotsky.

Nada disso se fez. O que verifiquei foi uma escola cansada, pálida e injustiçada. Professores doentes, cuja energia vocal era completamente dissolvida pela jornada de 40 horas de trabalho semanal exaustivo e degradante. Um aluno, de aproximadamente 11 anos, chegou a agredir uma professora com um tapa no rosto, o qual ela não pode compensar. O máximo que fez foi sentenciá-lo verbalmente. Alunos que não respeitam o professor, que não querem aprender, desinteressados, completamente desequilibrados por conta de uma estrutura familiar precária à qual destinou à escola outros papéis e obrigações que não a pertence. Foi esta a realidade que encontrei. E que me abalou, dilacerou minhas esperanças, frustrou minhas expectativas, derrubou meus ânimos e me fez desacreditar de Freire e Vygotsk. Hoje só me resta acreditar que a instância escola deveria ter leis próprias, com autonomia concedida pelo Legislativo para vigiar e punir, nada mais justo. Porque só quem nela trabalha sabe o peso que carrega e a medida de seu sofrimento.

Ter opinião livre, ainda bem, é uma premissa incondicional garantida no Brasil, e isso está na Constituição. Utilizei os mesmos argumentos acima naquele debate, entretanto, fui praticamente silenciado por pessoas que não quiseram ouvir. Por pessoas que têm opiniões sinceras e livres, mas que desconhecem a realidade e a quem lancei o distante desafio de entrar numa sala de aula para ver como as coisas funcionam. E disso posso falar com firmeza porque eu vivenciei o que é a escola hoje, tal qual a descrevi. Portanto, vale a lição mais nobre que poderia deixar: não se pode desvincular opinião de realidade. Se o pensamento e o discurso que verbalizamos nos remetem à experiência mais subjetiva que temos, então é melhor ter cuidado com o que se vai dizer para evitar expressões desconexas que remem contra a maré da vida.

3 comentários:

  1. Ótimo texto. Traduz bem a atual realidade da educação. Afinal, de que é a culpa pelo não interesse de aprender dos alunos? Dos pais, dos professores, do governo, da sociedade ou do aluno? Ou a culpa é concorrente?
    Independente de quem, temos que resolver o problema. Como, não sei. Invente a sua forma.
    Como ensina Spencer, "O objetivo da educação não é o saber, mas a ação". Dê sua Opinião e mude a Realidade. Matheus

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  2. Grande, Matheus! Minhas palavras não são dignas de lhe retribuir seu comentário à altura. O que posso dizer é apenas que fico agraciado por sua nobre gentileza de comentar este texto. A inteligência e o motor que movem tua alma estão materializados em seu comentário. Obrigado pelas boas conversas. É sempre tempo de aprender algo com o outro, principalmente por meio do diálogo. E você me valeu ensinamentos preciosos.
    Valeu! Um grande abraço!

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  3. Pelo contrário, são tão dignas que ultrapassaram a retribuição, tando que agora não consigo fazer o mesmo.
    Entretanto, quero dizer que tens um potencial imenso e desejo que acredite nele, só assim você irá conseguir o seu lugar ao sol.
    Caso não queira acreditar, leia o seu blog.
    Até o sucesso. Boa sorte.

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